
   
Manuel Barata          
    
      D'este viver aqui neste    papel descripto - ensaio
       
                  1. As chamadas “cartas de guerra” de António Lobo Antunes, reunidas no volume "D’este viver aqui neste papel descripto", são, também, um poderoso documento sobre a guerra colonial. Embora dirigidas a sua mulher, o autor constrói ao longo dos dois anos de comissão, isto é, entre 7 Janeiro de 1971 e 30 de Janeiro de 1973, através de múltiplas notações, um libelo acusatório contra as abjectas condições a que os homens estavam sujeitos, nos aquartelamentos das zonas de guerra.
 
       2. Porém, o conteúdo destas cartas   não se esgota nos valiosos apontamentos sobre a guerra e na profunda relação   amorosa com Maria José e ainda com a outra Maria José, a quem, até ao   nascimento, chamará muitas vezes o “cafeco”, que significa criança em   quimbundo. Através das cartas apreendemos também o mundo de relações do   autor e da extrema atenção que presta a todos aqueles com quem se   relacionava e com quem se continua a relacionar através da escrita de   aerogramas. Todos os familiares lhe conhecem o gosto pela leitura e muitos   enviam-lhe livros e revistas. De resto, é até curioso notar que António   sugere a Maria José que sugira livros que gostaria de ler, mas que não está   disposto a comprar, porque é absolutamente proibido gastar dinheiro. Esta   sua natureza poupadinha vai ser motivo de um tópico. Também merecerão   destaque neste trabalho testemunhos extraordinários que relevam do ponto de   vista da antropologia e ainda impressões sobre arte e literatura.
 
       3. Estamos, pois, em presença de uma   obra ímpar, que, apesar dos mil milhões de beijos enviados por António a   Maria José, a destinatária, extravasa vastamente a temática amor. Dir-se-ia   até, que, expurgadas das fórmulas mais ou menos canónicas dos começos e dos   impagáveis modos de terminar, estas cartas são, obviamente, muito mais do   que simples cartas de amor. Decidir se este é ou não o primeiro grande   romance do autor de memória de elefante, é tarefa que não assumimos neste   pequeno e despretensioso estudo.
 
       4. No entanto, não temos nenhum   problema em afirmar peremptoriamente, que, doravante, estas cartas terão de   ser lidas e relidas, por todos os que vierem a debruçar-se sobre os catorze   anos da Guerra Colonial. Pois esta determinou toda a vida portuguesa, quer   no rectângulo europeu, onde se procedia à incorporação, treino e mobilização   de homens, quer nas chamadas Províncias Ultramarinas, onde se situavam os   múltiplos teatros de operações. E marca ainda hoje, volvidos mais de trinta   anos, de forma indelével, gerações de portuguesa.
 
       5. Embora sejam o testemunho   subjectivo de um indivíduo, jovem médico e aspirante a escritor, as cartas   possuem a força das confissões espontâneas. A visão do autor é dada   silenciosamente, na puridade dos seus aposentos, como notas de um   quotidiano, que, apesar da distância, quer partilhar com a mulher amada.   Assim, cremos que estas cartas, primordialmente (?) amorosas, são mais   objectivas do que os relatórios militares e as notícias necrológicas,   sabendo nós que uns e outros eram vigiados e censurados. Acresce a tudo   isto, que, também nós, ainda que em teatros operacionais e época diferentes,   cumprimos serviço militar obrigatório, na menina dos olhos dos   colonialistas, isto é, em Angola. Não sabendo as surpresas que o tempo ainda   nos pode reservar, António Lobo Antunes terá sido, até ao momento presente e   através das suas cartas, aquele que, de 1961 a 1975, melhor verbalizou a   vivência da Guerra Colonial.
 
       6. “Porque é que vieram   interromper-nos tão brutalmente?” A pergunta é formulada na carta de 1.6.71,   escrita no Chiúme, Leste de Angola, quando o então alferes miliciano Lobo   Antunes, cumpria o serviço Militar obrigatório. É dirigida a Maria José, sua   mulher, ainda estudante e grávida de Maria José, a primogénita do casal. O   autor estava no fim do mês quinto da sua estada em Angola e Chiúme era já o   seu terceiro teatro de operações. Passara anteriormente por Gago Coutinho,   onde, apesar de tudo, tinha uma certa vida de relação. No Ninda, conhecera   Ernesto Melo Antunes a quem tece rasgados elogios e do qual será amigo para   sempre. Chiúme é o buraco dos buracos, o lugar onde a DO chega com menos   regularidade e há o célebre P., na messe, que não é, propriamente, um modelo   de higiene. É no Chiúme, finalmente, que o autor faz referência explícita,   reproduzindo de cor os dois versos finais, à Canção X de Camões. E   finalmente, porque essa célebre composição de Camões já andava pressentida   há muito, nestas cartas.
 
       7. A pergunta em epígrafe, que admite   várias interpretações, podia ter sido formulada por dezenas de milhar de   jovens soldados que, num dado momento das suas vidas, viam as suas vidas   interrompidas. As interrupções eram múltiplas: as luas-de-mel, os cursos, a   aprendizagem de profissões, os namoros, muitos e muitos projectos futuros,   no limite, a própria vida. Era tudo tão violento, nomeadamente, para quem já   tinha alguma instrução escolar e política. O povoléu, ignaro e obediente,   psiquicamente treinado para combater pela Pátria, batia-se, quase sempre,   até aos limites da insensatez. Quantas narrativas de actos de grande bravura   terão ficado por contar?
 
       7.1. Passados apenas quinze dias e já   o jovem alferes, médico de formação, notava que iria “pagar um preço muito   caro pela possibilidade de voltar a viver” em Portugal (carta de 31.1.71.).   As notações sobre a guerra são agora frequentes. Mais tarde há-de, já   calejado e aparentemente mais conformado, poupar Maria José aos relatos   horripilantes de mortos, amputados, feridos e desaparecidos. À exaltação   inicial, vai opor-se um homem mais ponderado e quiçá mais conformado.   “Escrevo-te de manhã, no gabinete da enfermaria, enquanto espero três   evacuados” (carta de 10.2.71); porém, e também para terminar este subtópico,   aqui ficam mais palavras de Lobo Antunes: “ Dos feridos gravíssimos de ontem   – três sujeitos cheios de balas – não há notícias, mas espero que se salvem.   Entretanto o morto – o guia – foi abandonado na mata às feras”( carta de   11.2.71).
 
       7.2. A guerra não era apenas   operações e mais operações militares e mortos e feridos e evacuados. Daí, a   pertinência da observação que segue: “ É incrível a guerra que aqui fazemos,   sozinhos e sem meios, contra um inimigo cada vez mais numeroso e bem   preparado” (carta de 11.2.71). E onde muitos outros meteram o bedelho, passe   o plebeísmo, como nota o futuro autor de As Naus: /.../ o nosso exército   prolifera e vive no meio de uma confusão e de uma desordem indescritíveis” e   mais à frente: “Chegam hoje os pilotos(17) nos seus pássaros gigantes, e não   sei de onde é que estes franceses vêm e por que diabo colaboram nisto”   (carta de 15.2.71).
 
       7.3. E apesar da guerra ser uma   actividade colectiva, onde acontecem os actos mais bárbaros e as   solidariedades mais grandiosas, António sabe que ele e os restantes   camaradas de armas, nomeadamente os mais esclarecidos, combatem fora da sua   terra e em defesa de uma causa iníqua. Combatem pelos execráveis passadores   de angolares por escudos, pelos novos-ricos que vão às festas em Luanda e   que tudo fazem para que as suas crias masculinas não conheçam os tenebrosos   teatros de operações. Não espanta, pois, esta constatação: “Cada um vive   quase somente para si próprio e para as cartas que recebe, preocupado com a   própria sobrevivência e mais nada” (carta de 17.3.71). Esta guerra,   decididamente, era sentida como algo que era imposto e cujo absurdo as   elites iam interiorizando. Não admira, assim, que, no pós-25 de Abril, a   situação nunca mais se tivesse estabilizado. Todos os sobreviventes queriam   voltar ao verdadeiro solo pátrio e ao seio das suas famílias. Cá, no   rectângulo europeu, ficou célebre a palavra de ordem: NEM MAIS UM SOLDADO   PARA AS COLÓNIAS!
 
7.4. Não eram, contudo, os tempos da incorporação e da mobilização, que marcavam o início das angústias familiares. A guerra começava a ser tema obrigatório para os rapazes e respectivas famílias, por altura dos quinze/dezasseis anos. Apesar de tudo, António Lobo Antunes terá iniciado o serviço militar já depois dos vinte e cinco anos, facto que lhe permitiu uma abordagem mais adulta e pontuada por uma imensa discrição. Porém, não deixam de ser dignas de registo as seguintes palavras de António:” O meu instinto conservador e comodista tem evoluído muito, e o ponteiro desloca-se, dia a dia, para a esquerda: não posso continuar a viver como o tenho feito até aqui” (carta de 15.5.71). É curioso notar que o futuro escritor, que se referia aos guerrilheiros por terroristas e que até mantinha uma relação amigável com o responsável da Pide, em Gago Coutinho, há-de deixar cair aquela denominação e esta amizade no esquecimento.
 
       7.5. António Lobo Antunes é filho de   uma futura grande família do reino. O pai é médico especialista e de   nomeada. O irmão mais velho segue, segundo cremos, as peugadas do pai.   António já é médico. E os restantes membros do clã hão-de desempenhar papéis   noutras áreas, a saber: advocacia, música e diplomacia, nomeadamente. O   nosso mancebo, compreensível mas tardiamente mancebo, vai transmitir,   através das suas cartas – as cartas a Maria José -, a sua visão da guerra   colonial e das actividades correlativas. A primeira grande nota de uma   situação burlesca é dada ainda durante a viagem, na carta de 14.1.71, onde o   futuro escritor descreve o ambiente das refeições, no paquete: “ Ao jantar e   ao almoço, uma velha oxigenada, com duplo queixo e chinelos, toca piano com   uma dificuldade míope, e ao lanche (chá e bolos), servido por uma nuvem de   criados, a orquestra «Vera Cruz», qual deles com a melhor pinta de chulo   lisboeta, magrinhos, brilhantinados, de olhar maroto, esfolam música de   cabaré de putas.” Tendo em conta o puritanismo da sociedade portuguesa do   início da década de setenta do século passado, imagine o putativo leitor a   cara daquela panóplia de tias e avós, se lessem aquela prosa enérgica e   realista de António.
 
       7.6. A guerra é uma fonte de medos   por excelência: os actores têm medo de morrer, de ficar estropiados, de ser   preteridos no amor, de ser esquecidos por amigos, familiares e até pela   mulher amada. Não espanta, assim, que o futuro autor de Cus de Judas , logo   na primeira carta, a de 7.1.71, em tom imperativo, mas com patética   sinceridade, escreva: “Lembra-te de mim”. De resto, esta fórmula vai ser   repetida assim ou modificada em dezenas e dezenas de cartas: “lembra-te de   mim, sempre/../”, “ /.../ tem paciência e lembra-te, de quando em quando, de   mim”, “/.../ lembra-te de mim, tem saudades minhas e gosta um bocadinho do   teu marido desterrado”, “Minha noiva linda, nunca te esqueças de mim”.   António teme até – e o seu temor é tão humano!...-, que os outros o   esqueçam. Daí esta tão comovente confissão nobreana: /.../ espero que   continuem a pensar no António coitado/.../” Nobre, o espantoso poeta do SÓ,   há-de ser referido explicitamente em duas das cartas e está presente,   implicitamente, em muitas outras. Este António, tal como o poeta, é aquele   que está longe da sua terra, das coisas e dos seres que lhe são queridos e   que vive, também ele, só e corroído pela saudade, já muito longe da sua   “torre de leite”. “92 dias separam-nos. Todas as manhãs desconto um. Vivo   desta aritmética da saudade/.../”, escreve na carta de 28.6.71.
 
       8. “Porque é que vieram   interromper-nos tão brutalmente?” António casara em Agosto de 1970 e   embarcou para Angola em 6 de Janeiro de 1971. O casal, apesar dos meses   entretanto decorridos e de Maria José já se encontrar grávida, vivia ainda   uma prolongada lua-de-mel. Era um dos efeitos da guerra. Vivia-se o dia   presente como se do último se tratasse. A guerra conferia a tudo, e ao amor   também, um carácter de urgência. Deixo aqui um verso de Ramos Rosa: “Não   posso adiar o amor para outro século”.
 
       8.1. As cartas escritas por António   são apaixonadíssimas. Aqui se transcrevem algumas das fórmulas iniciais,   que, de certo modo, atestam essa mesma paixão: “Meu querido amor”, com   noventa e quatro ocorrências; “Minha jóia querida”, repetida em quarenta e   cinco missivas”; “Minha querida jóia”, surge quarenta e uma vez; para “Meu   amor querido”, contamos vinte e seis; e “Meu amor” é utilizada em quinze   cartas. Porém, o trabalho de joalheiro vai mais longe, utilizando ainda as   fórmulas seguintes: “Minha jóia”, “Minha jóia adorada”, “Minha querida jóia   linda”, “Minha amada jóia”, “Minha jóia preciosa e querida”, “Minha jóia   zangada”, etc.
       Ainda no âmbito destes começos,   note-se o emprego de “Minha linda senhora” e também “Minha alma amada”, que,   ainda que este amor se alimente de carne, remete para códigos amorosos   antigos que o autor conhece bem e que não utilizará por acaso. Nomeadamente   a fórmula “Minha alma amada”, que configura uma identidade espiritual plena   entre os dois amantes. Maria José é o primeiro leitor de António e este   confere grande importância à sua opinião. Devido à separação, Melo Antunes   também há-de ler excertos, em primeira-mão, e dar alguns conselhos ao jovem   escritor.
       Como todos os casais, mesmo à   distância, os “amuos” também acontecem, ainda que para António sejam sol de   pouca dura. Diz o que tem a dizer, directa e incisivamente, e retoma a   relação com a ternura de sempre. É nestes momentos que inicia as cartas com   expressões diferentes das habituais: “Maria José”, “Sr.ª D. Maria José” e   “Minha Senhora”´. O ciúme também não está completamente ausente, quando,   numa das cartas, diz que se vive bem, em sua casa, na sua ausência. Outros   exemplos poderiam ser dados.
 
       8.2. Os finais das cerca de trezentas   cartas são memoráveis e muitos deles constituem verdadeiros hinos ao amor.   Outros, por sua vez, tocam-nos pelo insólito e pelo imenso humor de António.   É justo que se diga, neste preciso momento, que os finais das cartas são   profundamente caóticos. Há sempre uns milhões de beijos para acrescentar, um   “lembra-te de mim”, mais beijos, um “GTS”, etc., que nos dão conta da   profunda solidão em que vive este homem e da falta física que lhe faz a   mulher amada.
 
8.3. Nós sabemos, de saber de experiência feito, quanto doíam as carências afectivas. Sabemos, com saber de experiência feito, com se iludia essa dor. Sabemos, com saber de experiência feito, a quanta sordidez nos obrigou a guerra. Houve outros Antónios, mas deve ser aqui transcrito este testemunho: “ As minhas saudades tuas são imensas. É tão triste esta longuíssima separação” (carta de 10.5.71) e diz-lhe imediatamente: “Com nenhuma mulher dormirei senão contigo, a mãe do Toino – ou da Zézinha. Milhões de beijos /.../” (carta de 10.5.71). E no entanto, este homem morre de desejo: “Coloco o meu pénis na forquilha do teu corpo” (carta de 20.1.71) e remata esta carta com ” Milhões e milhões de saudades apaixonadas, de beijos, de festas, de carícias e de abraços/.../”.
       Dias depois, com os sentidos já na   ordem, se é que pode falar assim, escreve: “ o teu Van Gogh (tinha tido um   problema numa orelha) adora-te, minha gazelinha adorada, meu diamante   querido, minha pérola e minha estrela” (carta de 21.1.71); todavia, o seu   amor nunca deixa de ser superlativo: “Gosto tanto tanto tanto de ti” (carta   de 27.1.71). Alguns dias depois, o desejo voltava: “Eu queria tanto voltar a   ver-te! Deves estar, com certeza, cada vez mais bonita. E gorda. E   barriguda. Apetece-me tanto deitar-me em cima de ti e penetrar-te” (carta de   1.2.71). Passados alguns meses, já próximo do primeiro reencontro, escreve:   “Hoje tenho andado com uma terrível vontade sexual. Prepara-te para coitos   homéricos” (carta de 13.7.71) e num dos aerogramas seguintes reitera:” Gosto   tudo de ti, meu amor querido. E prepara-te para tetraquotidianos combates   singulares” (carta de 20.7.71).
       Mais palavras para quê?
 
       9. A escrita é a obsessão das   obsessões de António Lobo Antunes, que também é, como havemos de ver mais   tarde, um grande devorador de livros. Não dissemos grande leitor,   propositadamente, ainda que do seu currículo conste uma plêiade de autores   de narrativas, que começa com Homero, no séc.VIII a.C. e chega aos seus   contemporâneos, estrangeiros e nacionais. Há neste homem um dado relevante:   é detentor de uma memória prodigiosa, uma memória onde tudo se inscreve e   nada se apaga. Tem, na verdade, uma memória de elefante.
 
       9.1. Antes de avançarmos neste ponto   que denominamos a obsessão das obsessões, queremos aqui realçar o facto de   Lobo Antunes ter deixado manuscritos em Portugal, os quais manda destruir a   Maria José, na carta de 27.3.71. E diz mesmo que ficaria muito zangado, se,   porventura, encontrasse as suas “historietas miseráveis”, quando viesse a   Portugal. Mas quem tem acompanhado a vida do autor, sabe que escreveu desde   sempre. Pelo menos, é essa a ideia que deixa passar em todas as entrevistas,   quando perguntado sobre o assunto. E as cartas reiteram definitivamente essa   ideia, e, outra ainda, a da escrita como trabalho oficinal. Atente-se nas   próprias palavras do autor acerca do Voo: “ O problema tem sido reduzir a   minha prosa a uma simplicidade bem legível. Cortar o pescoço à eloquência”, Chiúme, 7.6.71. Eloquente!
 
       9.2. A escrita é o oxigénio de Lobo   Antunes. Parece predestinado para escrever livros e daí que, no interior da   própria família, o olhem diferentemente. As palavras do próprio autor: “No   fundo agrada-me que assim seja, sempre gostei muito do amor, sobretudo do   que eles têm por mim, que, não sei se já reparaste, é diferente do que   sentem pelos meus irmãos, porque eles têm a sensação de que possuo qualquer   coisa de irresponsável e imprevisível e de que farei um dia algo de heróico   e de louco e de sublime, que eles não sabem bem o que será mas que os mantém   em suspense”, carta de 12.4.71. E curiosamente, esta é uma das poucas   missivas em que não fala da “história” ou histórias, tanto faz.
 
       9.3. A inscrição da sua escrita,   nesta grande narrativa epistolar, é iniciada com uma intenção: ”Qualquer dia   recomeço a escrever (carta de 29.1.71)” e dois dias depois   avisa:”/.../começo, de novo, a pensar no livro/.../”. Na carta de 7.2.71,   escreve: “ Começo a assentar e a serenar. Comecei, talvez por isso, e a   escrever um novo Dilúvio /.../ “Na missiva de 11.2.7, assegura: “ A história   cá se vai fazendo com o pouco tempo que para ela tenho, com facilidade e sem   muletas.”; para asseverar, cinco dias depois: “ A minha história lá avança   entretanto, e parece-me genial...". A 24 de Fevereiro, afirma: “/.../ Tenho   avançado o Dilúvio contra ventos e marés, e espero tê-lo pronto e genial   antes das férias.” Apesar do tom optimista em que se expressa; nota-se já,   todavia, que algo não vai inteiramente bem com este livro, que trazia   iniciado de Lisboa e que há-de abandonar.
 
       9.4. Na carta de 13.3.71, António,   eufórico, revela a Maria José: “Ontem passou-me uma coisa pela cabeça e   comecei a escrever uma história completamente nova, com uma facilidade   incrível. É uma coisa que me tem entusiasmado para lá de todas as palavras,   e que excede, mesmo, tudo quanto me julgava capaz de fazer”. E não se cansa   de tecer elogios ao seu novo projecto, que conta ainda apenas com dez   páginas, mas que será um romance “assombroso” e o mais “revolucionário” de   todos os que já lera. E assevera que não está “a ser pedante, nem aldrabão,   nem exagerado”. É o dia triunfal de Lobo Antunes que, de resto, já era um   velho conhecido de Fernando António e conhecia a génese dos heterónimos.
 
       9.5. É verdadeiramente impressionante   a quantidade de autores que, aos vinte e oito anos de idade, António já   tinha lido e sobre os quais se permite emitir juízos de valor. Conhece os   autores sul-americanos fundamentais, que se expressam em português e   espanhol. E, apesar da “sua tenra idade” e da ausência de obra publicada,   olha-os de cima para baixo (é assim que quero dizer). Gabriel Garcia   Marquez, e, sobretudo, Cem Anos de Solidão, Carlos Fuentes e Cortázar, são   dos raros autores, do subcontinente, que se salvam da mira sempre muito   crítica do futuro autor de A Morte de Carlos Gardel.
 
       9.6. Os franceses, que conhece   abundantemente, passam sem grandes críticas. La Chute de Camus é uma coisa   bem escrita. A Peste, lida aos dezasseis anos, era uma coisa extraordinária;   mas aos vinte e oito, já era maçadora. De resto, parece não apreciar muito a   literatura solar de Camus. Nem uma só referência a O Estrangeiro. André Gide,   o esteta, é referido várias vezes, mas sem adjectivos. Copia-lhe o método do   caderninho. Acusa Balzac “pela cristalização do romance”. Conhece o   antiquíssimo Cyrano de Bergerac. Mostra grande interesse pela Shafo de   Alphonse Daudet e lê Samuel Beckett. Quem exerce, no entanto, um grande   fascínio sobre o jovem escritor é Céline, que chega a considerar o maior,   ainda que determinados juízos de valor reflictam muito o estado de alma do   momento em que são formulados.
       Ainda uma pequena nota referente à   língua francesa. António revela um grande conhecimento da língua – e não   será desapropriado dizê-lo – um certo gozo em utilizar expressões da língua   de Victor Hugo, ora para valorizar a beleza de Maria José, ora para dizer   quanto detestava aquela situação que lhe roubava dois anos da sua vida. Aqui   fica o registo de algumas expressões francesas:”tristesse”, “três hasardeux”,   “à la longue”, “soyons heureux”, “à en mourir”, “environement”, “refaire une   beauté”, “je m’en fiche”, je deteste ça”, etc.
 
       9.7. Quanto aos espanhóis da   península, Lobo Antunes não dá conta dos seus conhecimentos. Trata   familiarmente Don Miguel de Unamuno, atribui um verso de Lorca a Rosalía de   Castro e faz uma referência elogiosa a Jorge Semprún, que lhe foi revelado   por Melo Antunes.
 
       9.8. Ainda no que concerne a autores   estrangeiros da sua predilecção, para além dos sul-americanos já   anteriormente referidos, avultam Joyce e Faulkner. Do primeiro diz: “ /.../   o melhor do mundo é James Joyce” (carta de 7.7.71) e quer o seu retrato, na   “nossa casinha”, em lugar de destaque. Em relação a Faulkner, diz que   gostaria de ter escrito todos os seus livros. E na mesma carta (Carta de   23.2.72), numa condusão propositadamente torrencial e incoerente e por   metonímia, refere Hemingway e Stendhal e Flaubert e e Thomas Mann, etc. e   depois lembra-se de Tolstoi, “que é o maior de todos”. Outros autores são   citados: Franz Kafka, Gunther Grass, Truman Capote, etc. E talvez seja justo   dizer, neste ponto, que, apesar das nossas omissões, a carta de 23.2.72,   escrita na Marimba, fixa a árvore genealógica de António Lobo Antunes.
 
       9.9. Era espectável que António Lobo   Antunes nos desse mais notícias de autores portugueses. Afirma,   curiosamente, que os três maiores escritores portugueses são Camões, Pessoa   e Bocage. Deste último lamenta o facto de não o conhecer tão bem como devia.   E de andar associado ao anedotário.
       Lê ensaios de Jorge de Sena, contos   de Almada, romances de Namora e descasca em O’Neill. Acerca da obra deste   último, As andorinhas não têm restaurante, diz tratar-se de uma série de   prosas sem categoria nenhuma, /.../ Qualquer coisa de fotonovela e nem um   cheiro daquela atmosfera russa indefinível/.../, que eu tanto gosto de   respirar” (carta de 27.2.71).
       Acha que Soeiro Pereira Gomes seguiu   demasiado Os Capitães da Areia de Jorge Amado, na Engrenagem; contudo, tece   rasgados elogios ao neo-realismo, por ter dado voz ao país real. De Redol lê   A Barca dos Sete Lemos e não faz quaisquer comentários.
       Não é natural, em nossa humílima   opinião, que o futuro autor do Esplendor de Portugal, se tenha esquecido dos   grandes novelistas portugueses de oitocentos: Garrett, Camilo e Eça. E ainda   de nomes do séc. XX como José Cardoso Pires e Agustina Bessa Luís.
       É estranho, não é?
 
       10. António Lobo Antunes revela uma   grande sensibilidade pelas questões de natureza antropológica. Ao longo das   cartas são abundantes os seus testemunhos, quer no que toca ao modo de   organização das populações, à volta dos chefes tribais; quer no que concerne   às suas crenças e práticas ancestrais. Não sendo um documento insubstituível   ou sequer de referência, as cartas revelam aquele que numa delas se despede   como “marido, pai e escritor”, como um homem de grande sensibilidade e de   cultura.
 
       10.1. Os merengues, que também servem   para avisar os guerrilheiros ( para Lobo Antunes ainda são terroristas) da   saída das tropas, “são fabulosos de ritmo e de beleza selvagem. Ao centro,   um grupo de homens percute os tambores, e a malta dança de roda, velhos e   novos, mulheres com filhos às costas, etc., mexendo-se com uma espantosa   facilidade e um ritmo extraordinário, cantando ao mesmo tempo uma melopeia   estranhíssima” (carta de 15.2.71).
       Ainda que desde sempre “o tricotar   subterrâneo” da escrita o tenha absorvido, António é por formação um homem   de ciência, mas nem por isso deixa de assistir a certas cerimónias   autóctones: “Hoje, domingo, passei a manhã, numa cerimónia curiosa, a   assistir è esconjuração de uma doente, para que a doença saísse de dentro   dela” e mais à frente: “três homens tocavam tambor e a malta dançava e   cantava à volta/.../” (carta de 7.3.71).
       Porém, nem todas as práticas eram   benfazejas: “Ontem, em consequência de uma feitiçaria, amarraram uma velha a   um quimbo e queimaram-na viva no Ninda, rito ainda frequente nestas   paragens”(carta de 24.3.71).
 
       10.2. A sexualidade é um daqueles   temas que nunca lhe poderia passar ao lado. E a sua condição de médico,   permitia-lhe um conhecimento provavelmente vedado a outros: “/.../ os casos   impotência masculina são frequentíssimos, e todos os dias oiço tristes   queixas de machos desiludidos, exibindo pénis formidáveis e inúteis” (carta   de 12.3.71).
       Constata que “ Não existe   homossexualidade, a não ser numas vagas ligações helénicas entre velhos e   miúdos, que se desfazem com a puberdade destes. O beijo é ignorado, as   carícias também, e a fornicação faz-se de lado, numa imobilidade de   preguiça, durante horas, sem se tocarem, numa indiferença absoluta” (carta   de 2.4.71).
       A desfloração de uma garota nativa   por um coxo grotesco, é assim descrita:” Um coxo/.../ foi-se a uma garota de   uns nove anos e, como eles dizem, «tirou-lhe o cabaço»: em vez de oito anos   de prisão maior celular., a malta teve uma alegria enorme. Seguem-se oito   dias de batuque”.
 
       11. Luanda e os luandenses brancos   não mereceram a simpatia do futuro grande escritor. A capital de Angola   perpassa pelos olhos do artista como “uma espécie de Areeiro de província,   com o mesmo pretensioso gosto suburbano/.../” e os seus habitantes brancos   “/.../têm o mesmo indefinível aspecto de vendedores de automóveis/.../” dos   da Metrópole. As mulheres são “/.../ tipo locutoras de rádio, demasiado bem   vestidas para serem inteiramente honestas.”Nesta carta, a de 16.1.71,   fala-nos ainda do Grafanil, que era o grande entreposto humano e mercantil   que alimentava toda a guerra, naquele imenso território. Estas eram apenas   as primeiras impressões.
       Na carta de 21.3.71, Luanda volta a   estar sob a mira do artista. Sente-se irritado com a vida da capital, onde   nada falta e a fazer fé nas revistas, que publicam as fotografias, há   “bailes” e “festas” e “eleições de misses”, enquanto lá longe, nos   perímetros dos aquartelamentos, os militares sofrem por todos aqueles que se   divertem e os olham com desdém. Mas apesar de não querer pormenorizar por   razões óbvias, não deixa de afirmar: “/.../ os brancos locais, sobretudo os   das cidades, são de um tipo novo-riquismo saloio e soberbo, verdadeiramente   insuportável.” Em suma, são gente “execrável”, que não merece as   potencialidades de Angola e aponta-os como ”os descendentes dos degredados”.
 
       12. As notações meteorológicas de   Lobo Antunes, para além de fidedignas, dão-nos também “uma visão de   artista”. Na curta estada em Luanda e na companhia de outros militares,   visita a ilha, mas percebe-se que não gosta do que vê e descobre que “O céu   nunca é azul mas maciço, grosso, espesso, triste (carta de 17.1.71). Luanda   é apenas uma escala a caminho do Leste. Já em Gago Coutinho, vejamos como o   autor descreve as grandes chuvadas: “/.../ têm caído aqui chuvadas   gigantescas; em cinco minutos fica tudo alagado de charcos e poças imensas,   /.../ as trovoadas, fantásticas de intensidade, desabam em cima de nós numa   cadência de Apocalipse” (carta de 31.1.71).
       A estação das chuvas vai cessar.   Aproxima-se o tempo do cacimbo. As palavras do autor: “O calor tem sido,   nestes últimos dias, diabólico, e o céu permanece imperturbável. É o início   do cacimbo, mas as noites frias ainda não começaram” (carta de 12.3.71).   Está-se, com efeito, num período de transição. Precava-se o leitor, que a   coisa vem em crescendo: “ontem à noite desabou aqui uma tempestade imensa, a   maior a que até agora assisti, com relâmpagos a caírem por todos os lados,   numa sucessão ininterrupta, e os trovões a rebolarem num ruído enorme /.../   “ Mas ainda não era tudo. As trovoadas em Angola, às quais também   assistimos, eram fenómenos excepcionais. De novo as palavras do autor das   cartas: “Tudo tremia e oscilava. Os raios eram tantos que parecia dia /.../,   as casas saíam do escuro numa claridade ofuscante, e o som da água era   verdadeiramente ensurdecedor”(carta de 8.8.71). Poderíamos transcrever   outros excertos, igualmente realistas e belos, porque as notações de ordem   climatérica são abundantes, nestas que também serão, com toda a certeza,   comoventes cartas de amor. Cada leitor que tenha passado por Angola, pela   imensidão do espaço e da noite, na época das chuvas, sabe que a forma de   dizer é a de um artista da palavra, mas a matéria substantiva já está ali   toda.
 
       13. Há um só aspecto nestas cartas –   e por que não dizer uma linha de força -, que nos chocou do princípio ao   fim: a relação de António com o dinheiro e as restantes coisas materiais.   Sabemos que era casado e que contraíra determinadas responsabilidades, mas   também sabemos que a sua família vivia muito acima da média das famílias   daqueles soldados - e até muitos graduados - , que nada tinham e que por   isso mesmo viam na tropa uma forma de fugir a quotidianos ainda mais pobres.   E que o seu vencimento de alferes e os dinheiros recebidos do exercício da   sua profissão junto das comunidades locais, formavam uma massa monetária   verdadeiramente invejável.
       António conta os tostões um a um e   sabe a totalidade do dinheiro que já enviou, que irá receber, aquele com que   fica e ainda amealha, para depois comprar um carrinho e outras coisas.   Compra arte indígena, feita por encomenda, mas confessa depois que tinha   gasto uma ridicularia de angolares.
       Ainda neste capítulo, e porque também   revela uma personalidade, destaque-se o envio de uísques e outras bebidas   por diversos portadores. António não bebe, mas sabe que o material é bom e   que a compra é um bom negócio.
   
      por Manuel Barata
      em   Cantinho da Poesia
      12.01.2006